Nova lei paulista – o ranking dos reclamados

6 de fevereiro de 2014
Compartilhe

O Código de Defesa do Consumidor – CDC –  está prestes a completar 24 anos de existência, colecionando muitos acertos, mas também alguns erros. É inegável que o CDC é uma das leis de proteção ao consumidor mais avançadas que existe no mundo. Todavia, persegue seu objetivo com tanto afinco que por vezes desconsidera totalmente o direito do fornecedor, dificultando ou encarecendo sua atividade. Podemos citar, como exemplo, que o consumidor, ao exercer seu direito de arrependimento (art. 49), não poderá arcar com nenhum custo, incluindo o custo do frete para retirada do bem devolvido. Tal privilégio não é concedido em países mais desenvolvidos, como é o caso dos europeus, já que lá o consumidor arrependido poderá arcar com as despesas diretas da devolução do produto, conforme o artigo 6º, item 1, da Diretiva 97/7/CE.

Entre um dos equívocos cometidos pelo CDC, a nosso ver, está seu artigo 44, que dispõe que “os órgãos públicos de defesa do consumidor manterão cadastros atualizados de reclamações fundamentadas contra fornecedores de produtos e serviços, devendo divulgá-lo pública e anualmente. A divulgação indicará se a reclamação foi atendida ou não pelo fornecedor”. Não há equívoco na regra em si (exceto, obviamente, pela palavra “fundamentada”, termo subjetivo em demasia para que possa oferecer segurança jurídica aos jurisdicionados), mas na sua falta de efetividade, tendo em vista que raramente um consumidor procura informações junto ao PROCON de seu Estado para decidir se contrata esse ou aquele fornecedor. Isso ocorre, frequentemente, por falta de conhecimento por parte do consumidor da disponibilidade dessa ferramenta.

Tentando corrigir o problema acima descrito, o Estado de São Paulo promulgou a Lei nº 15.248, de 17 de dezembro de 2013, que pretende obrigar a divulgação, nos próprios estabelecimentos, do “ranking” dos fornecedores mais reclamados no PROCON-SP. Em outras palavras, conforme o artigo 1º da lei, os fornecedores que estiverem entre os 10 maiores reclamados do ranking do PROCON-SP deverão divulgar, de maneira visível, clara, ostensiva, nos respectivos pontos de atendimento ou de venda, físicos e virtuais, o referido ranking, de modo com que o consumidor, antes de contratar, possa saber que aquele fornecedor costuma dar dor de cabeça.

A Lei nº 15.248/13 foi explícita em incluir os fornecedores virtuais, ou seja, é plenamente aplicável ao e-commerce, restringindo-se aos fornecedores com estabelecimento dentro do território paulista.

Poderíamos destacar os problemas da Lei nº 15.248/13 sob o aspecto prático e sob o aspecto legal. Na prática, o ranking formalizado pelo PROCON-SP gera distorções que impedem o verdadeiro esclarecimento do consumidor. O órgão costuma elaborar dois tipos de ranking: o de reclamações e o de reclamações não atendidas. Conforme a Lei, o ranking a ser divulgado é o de mais reclamados, independente dos números de vendas e reclamações, ou seja, um pequeno fornecedor que venha a ter 100 (cem) transações/vendas e 70 (setenta) reclamações em um determinado período ficará em melhor posição do que um grande magazine que teve 1.000 (mil) transações e 100 (cem) reclamações. Não há qualquer relação de proporcionalidade em relação ao número de clientes e ao número de reclamações, o que penalizará especialmente as grandes empresas.

Outro problema prático é que o PROCON-SP costuma reunir empresas do mesmo grupo empresarial, o que impede que o consumidor tenha maior precisão ao escolher onde comprar seu produto, até porque, se formos falar de e-commerce, duas das grandes empresas brasileiras do setor estão reunidas porque formam um grupo, mesmo que seus processos e procedimentos internos aconteçam de forma independente.

Os problemas jurídicos da Lei nº 15.248/13 são, porém, os que causam maior preocupação aos fornecedores virtuais. Isso porque, por se tratar de uma lei paulista, é aplicável apenas dentro do Estado de São Paulo, o que limita sua incidência, bem como limita a amplitude da punição a que será submetido o reclamado. Todavia, o comércio eletrônico não possui barreiras geográficas, ou seja, o site visualizado em São Paulo é o mesmo visualizado no Amapá, sendo que a publicidade que se dará quanto às reclamações extrapolará o espaço territorial de incidência da lei. Em outras palavras, o fornecedor de e-commerce sediado em São Paulo será indiretamente obrigado a informar a todos os seus consumidores brasileiros e estrangeiros que é um dos grandes reclamados paulistas, independentemente de ser alvo de reclamações em outros estados. O legislador paulista, desse modo, extrapolou sua competência ao prever punição aos fornecedores que ultrapassam os limites territoriais do seu estado.

Poder-se-ia, igualmente, questionar a competência do Estado de São Paulo para prever a obrigação estabelecida na referida lei, inclusive no que toca à sanção do artigo 56 do CDC no caso de descumprimento, o que geraria a inconstitucionalidade da norma. Por outro lado, como já apontamos acima, as empresas que compõem o mesmo grupo econômico poderiam se insurgir contra o ranking tendo em vista que, como são pessoas jurídicas distintas, não poderiam ser punidas em bloco, sem que se individualizasse o número de reclamações de cada uma delas. Ora, se as reclamações fossem pulverizadas, algumas empresas do grupo poderiam nem mesmo constar no ranking.

Entendemos, assim, que o legislador paulista perdeu uma grande oportunidade para melhor delimitar quais critérios devem ser utilizados para a elaboração do Cadastro de Reclamações Fundamentadas do PROCON-SP, bem como de estabelecer regras específicas destinadas ao e-commerce, impedindo, assim, a avalanche de questionamentos judiciais que certamente terão como objeto a Lei nº 15.248/13.

 

Márcio Cots é professor de Direito e Tecnologia nos MBAs da FIAP. Mestre em Direito pela FADISP. Extensão Universitária em Direito da Tecnologia da Informação pela FGV-EPGE e especialista em Cyberlaw (Direito Cibernético) pela Harvard Law School – Harvard University – EUA. Foi Direito Jurídico e de Compliance de empresas de tecnologia por mais de 10 anos. Autor de diversos artigos sobre o tema Direito Digital e E-Commerce. Participou como jurista contratado da Ordem dos Advogados de Angola, nos projetos de lei para regulamentação do uso da Internet e é membro da Comissão de Crimes Eletrônicos e de Alta Tecnologia da OAB/SP, assim como associado à ABComm – Associação Brasileira de Comércio Eletrônico. Sócio do escritório Cots Advogados, especializado em Direito Digital e E-Commerce.

Nosso site armazena cookies para coletar informações e melhorar sua experiência. Gerencie seus cookies ou consulte nossa política.

Prosseguir