A Queima do Diabo

2 de dezembro de 2013
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A Guatemala é um país pequeno que tem muitos rituais e celebrações exóticas e misteriosas, provavelmente uns dos resultados da descendência maia misturada com a conquista espanhola. Agora não consigo lembrar de todas, já faz tantos anos que moro fora, mas algumas delas ainda estão muito vívidas na minha  memória, em especial as que acontecem no final do ano.

Como a receita do fiambre que se prepara no dia dos mortos, em novembro, que é um prato que tem todo tipo de comida misturada – carnes, queijos, legumes – e se  prepara só neste dia para levar no cemitério e oferecer para os mortos. Também é tradição nesse dia empinar enormes pipas nos cemitérios em homenagem aos que já não estão mais conosco.

Uma outra é a figura de Maximón, deidade misteriosa e obscura que tem diferentes histórias que explicam sua origem. Alguns falam que é a imagem de Dom Cabral, o conquistador, outros falam que é uma deidade maia que já existia antes. Mas,  independente da história que se acredite, o certo é que o Maximón é uma deidade para a qual se fazem oferendas de cigarros e  álcool para receber ajuda nas coisas da vida, saúde, amor, e qualquer outra que a condição humana possa sentir que precisa ajuda.

E tem uma outra que acontece bem nessa semana – dia 07 para ser precisa –  e que se chama A Queima do Diabo – tenho quase certeza que é uma celebração mágica – religiosa que acontece só no nosso pequeno canto do mundo.

As pessoas fazem uma limpa de todos os papeis, jornais, revistas e outras coisas velhas que foram acumulando durante o ano e montam  pilhas nas ruas da cidade. Exatamente às 18 horas, essas pilhas são incineradas com fogo e a cidade inteira se enche de fogueiras e foguetes que os mais entusiastas aproveitam para queimar. Também se penduram, sobre estas pilhas de lixo,  grandes piñatas vermelhas com cachos pretos, diabos mesmo, que também são queimados como parte da cerimônia.

Talvez por ter crescido com esta cerimônia muito presente durante minha infância e adolescência,  toda  vez que chega esta época de fim de ano me sinto de repente apoderada por uma necessidade de fazer uma limpa total da minha casa (infelizmente não posso sair na rua aqui em São Paulo para queimar a minha pilha de lixo!) mas começo que nem maluca a limpar todas as gavetas e armários e separar o que está sendo usado e o que é supérfluo. É algo maior que eu, é uma necessidade que parece  ter  vida própria.

E estava eu nesse processo esses dias, separando brinquedos dos meus filhos e tirando as revistas acumuladas no banheiro, quando me lembrei da Queima do Diabo e pensei: “Será que não seria bom fazer o mesmo ritual com os pensamentos que fomos acumulando na nossa cabeça durante o ano, da mesma forma que fazemos as resoluções quando começa o ano?”  Provavelmente seria o mesmo (ou muito maior!) alívio do que fazer uma limpeza do nosso espaço físico – uma limpeza do nosso espaço mental, para abrir novos espaços para o ano que estar por vir.

Então, fui e procurei a Queima do Diabo no Wikipedia já que nunca havia estudado o tema, simplesmente era algo que acontecia e que fazia parte do nosso universo. E – oh! Surpresa – me deparo com a informação de que a data de  7 de dezembro coincide com os nove meses do memorial do nascimento da Virgem Maria e com o advento do nascimento de Cristo, e que a celebração é para ser um tipo de limpeza espiritual em que a queima do lixo  simboliza  a distância que se pretende ter de todas as impurezas que podemos ter dentro de nós.

Confesso que depois da minha primeira comunhão não continuei estudando a minha religião católica e que não sou nenhuma especialista nessas datas.  Mas foi bom validar que esses ciclos e sentimentos que parecem acompanhar os meses do ano podem de fato estar interligados com coisas maiores, e não são só um produto da minha noia ou compulsão pessoal. Já várias vezes extrapolei nas minhas limpezas anuais e joguei coisas que meses depois me arrependi, pensando… o que que eu estava pensando mesmo? Talvez não estava pensando mesmo, e só fazendo minha parte numa tradição ancestral.

 

 

Nathalie Trutmann Chief Magic Officer da FIAP, acumula uma vasta experiência em diferentes cargos e setores. Seu currículo inclui passagem pela área de marketing em indústrias farmacêuticas e de consumo na América Central, Ásia e Nova Zelândia. Nathalie estudou na Universidade da Califórnia – San Diego – e tem MBA pelo INSEAD, uma das mais renomadas escolas de negócios do mundo.

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